A cegueira do aedo

Sobre a correlação entre cegueira e dom poético na mitologia grega

Abreu Ferreira
6 min readOct 21, 2023

A corte dos feácios

Na Odisseia, é a nado que Ulisses escapa do mar violento e aporta na ilha onde moram os feácios, após dias fustigado pela fúria de Posêidon. Então, com aspecto horrível, tendo apenas um ramo de folhas a esconder sua nudez, apresenta-se diante da filha do rei Alcino. Dada tamanha ofensa, seria de se esperar um prolongamento das dores de Ulisses — que o lançassem de volta ao mar, ou que exercessem a pena capital. É de causar espanto, assim, a hospitalidade com que é recebido.

Em livro tão repleto de sofrimento é nítido o contraste do episódio da corte dos feácios com o resto da narrativa. Mesmo um estrangeiro e um desconhecido, Ulisses é recebido como um rei no palácio dourado de Alcino. Tem direito a cama, roupas e banho, além de lhe oferecerem uma nau veloz, tripulada por cinquenta e dois dos melhores do povo, para lhe devolver à saudosa Ítaca. Prepara-se em sua homenagem uma festa vultosa, cheia de presenças egrégias, farta em comida e bebida e animada por danças e contendas atléticas. Oferecem-lhe, até, muitos e ricos presentes, para que seu regresso não seja de mãos vazias. Mas, a despeito da inebriante pintura que Homero faz da festa e da hospitalidade feácia, nada no episódio chama tanta atenção quanto a presença do aedo Demódoco.

Demódoco, Tirésias, Homero

Ao longo do oitavo canto da Odisseia, Demódoco canta três episódios. Um deles é quando Hefesto descobre a traição de sua esposa Afrodite com Ares e prepara uma artimanha para puni-los (versos 266 a 366). Nos outros dois o próprio Ulisses figura, como se os deuses houvessem informado o aedo de sua presença. São eles a discussão travada entre Ulisses e Aquiles na presença de Agamêmnon (versos 62 a 75) e o assalto à cidade murada de Troia, episódio protagonizado pelo famoso presente de grego (versos 499 a 520). Mas, para além dos episódios que canta Demódoco, sua própria figura desperta interesse. Assim ele é apresentado: “Chegou depois o arauto, trazendo pela mão o exímio aedo,/ a quem a Musa muito amava. Dera-lhe tanto o bem como o mal./ Privara-o da vista dos olhos; mas um doce canto lhe concedera.”¹

Não é o único caso na mitologia grega em que os deuses concedem um dom em troca da visão; basta ver o caso de Tirésias, vidente que, além de aparecer na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, figura na própria Odisseia, no canto XI, em que Ulisses relata tê-lo encontrado no Hades.

Caso similar se encontra no plano do factual. Segundo a Introdução de Bernard Knox à Odisseia, pouco de certo sabemos sobre Homero: nem o período em que viveu, nem seu local de origem. Mas havia um consenso entre os gregos: o de que o grande poeta era cego. Ressalve-se a incongruência disso com a sugestão do mesmo Bernard Knox de que Homero tenha se valido da escrita na composição de seus versos: se ainda hoje há pela população cega dificuldade de acesso à leitura e à escrita, que se dirá da Antiguidade?

De todo modo é certo que, em se tratando de Homero, Mito e História se confundem. Da mesma forma que a cegueira teria favorecido os cantos de Demódoco e a vidência de Tirésias, teria também o feito aos versos de Homero. Assim, pouco importa a especulação de que Demódoco seja um autorretrato de Homero. Demódoco, Tirésias e Homero são cegos, em larga medida, porque eles precisam ser cegos; porque há um motivo mítico profunda que fecundou no imaginário grego essas personagens. Ao fechar-se a porta visual de contato com o mundo abrem-se os olhos espirituais, ou, posto de outra forma, é preciso abdicar do plano terreno para acessar o plano divino.

A divindade do aedo

Se, porém, por um lado Tirésias não poderia saber das coisas que sabe sem um dote sobrenatural, não é imediatamente óbvia a necessidade de patrocínio divino para que existissem grandes aedos como Demódoco ou grandes poetas como Homero. Veja-se por exemplo a fala de Ulisses: “É com grande propósito que cantas o destino dos Aqueus — / tudo o que os Aqueus fizeram, sofreram e padeceram — / como se lá tivesses estado ou o relato ouvido de outrem” (canto VIII, versos 489 a 491). Ora, o que impede Demódoco de ter lá estado ou de ter ouvido o relato de alguém?

Ao contrário do que pode parecer a nós, que temos todos os mitos da Antiguidade a um Google de distância, o assunto dos cantos dos aedos não pertencia ao repertório comum a qualquer cidadão grego; menos ainda em se tratando da época de Demódoco, que remonta ao início da tradição épica heroica que atingiria seu ápice em Homero. Era raro encontrar bom conhecedor dos feitos heroicos e divinos.

Seja como for, para os gregos não bastava conhecer os fatos para cantá-los com habilidade e beleza. Hoje temos uma visão individualista do artista, calcada no talento e no esforço individual, mas, pela visão grega, toda arte dependia da inspiração divina. A inspiração divina dos aedos é por exemplo sugerida por Ulisses, quando no banquete oferece a Demódoco um naco de carne e diz: “Pois entre todos os homens que estão na terra, os aedos/ granjeiam honra e reverência: a eles ensinou a musa/ o canto porque estima as tribos dos aedos” (canto VIII, versos 479 a 481). Ulisses sugere ainda que, não fosse a Musa, o próprio Apolo teria “ensinado” Demódoco (canto VIII, verso 488).

Também por isso no começo da Odisseia Homero se remete à Musa: “Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou/ depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. […] Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus” (canto I, versos 1 a 10). O mesmo é visto quando, a respeito de Demódoco, diz a voz épica: “e o aedo, incitado, começou por preludiar o deus,/ revelando depois o seu canto” (canto VIII, versos 499 e 500).

Para além disso, note-se nesse último verso a escolha do verbo “revelar”, em vez de “executar”, “compor” ou algo que enfatizasse o engenho e a performance de Demódoco. O aedo não era de fato um artista no sentido moderno, mas antes uma espécie de rádio que tinha por encargo transmitir a voz divina. Ouvir um aedo era mais do que o entretenimento que derivamos de um show musical; a experiência alcançava um caráter ritualístico. Por isso Demódoco é tratado com tanta deferência no canto VIII, chegando mesmo a ser infantilizado pelos mimos que recebe e por ser trazido o tempo todo pela mão — tratamento incompatível com a visão moderna, que preza pela autonomia da pessoa deficiente.

A lira de Ulisses

Com isso nos resta uma última questão: nos cantos IX a XII, quando Ulisses relata suas aventuras, pode ele ser encarado como um aedo legítimo? Embora no aspecto performático seja deveras um cantor épico, ele não atua como ponte entre deuses e homens; tanto que, ao iniciar seu relato, não faz nenhum apelo aos deuses, mas antes os condena: “Que coisa te contarei primeiro? Que coisa no fim?/ Pois muitas foram as desgraças que me deram os Olímpicos” (canto IX, versos 14 e 15). Se Demódoco vive desconexo da realidade, a Ulisses sobram olhos, e é sua própria experiência que serve de matéria para seu canto.

A chave para o problema está antes no conteúdo da canção que na voz que a canta. Ulisses, apesar de não ter uma vidência divina que o autorize como aedo, se redime pelo caráter extraordinário de suas aventuras. Para citar apenas algumas, ele resistiu à amizade dos lotófagos, sobreviveu a Cila e Caríbdis, logrou o ciclope Polifemo et cetera. Se tantos feitos heroicos não o tornaram um deus, ao menos o imortalizaram na memória dos homens e dos olímpicos.

Para um último argumento vale recorrer à fala do rei Alcino, que enxerga no sofrimento humano uma benevolência divina: “Foram os deuses os responsáveis: fiaram a destruição para os homens,/ para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos” (canto VIII, versos 579 e 580). Em se tratando das aventuras de Ulisses é só a intervenção dos deuses, explícita ou implícita, em seu revés ou seu favor, que outorga a elas o toque do divino.

Notas

[1] Excerto colhido da tradução de Frederico Lourenço, como todos os demais.

--

--