O realismo e o real

A ideia literária de realismo é tomada de convenções arbitrárias e mutáveis. Nem por isso é menos valiosa.

Abreu Ferreira
3 min readOct 18, 2023

Classificar uma literatura como realista é sempre hiperbólico, pois há uma barreira intransponível entre o mundo literário e o mundo real. Essa barreira é evidente em obras de cunho fantástico tais quais Harry Potter e O senhor dos anéis, mas também se faz presente até mesmo em literaturas de não-ficção, como em Hiroshima, de John Hersey, onde o autor se limita a narrar eventos que de fato aconteceram.

Isso acontece porque a própria seleção dos fatos e sua organização numa narrativa coesa implica uma deformação da realidade, onde os fatos se manifestam de forma largamente aleatória e desconexa. Por isso uma das discussões mais pervasivas nas grades dos cursos de Jornalismo é sobre o quanto é impossível ser verdadeiramente imparcial.

Porém a seção entre literatura e realidade é ainda mais profunda, pois concerne a uma limitação da própria ferramenta do artista da palavra: como nos ensinou Ferdinand de Saussure, o pai da linguística moderna, é da própria natureza da linguagem haver uma ligação arbitrária e imprecisa entre significado e significante. A palavra “cachorro” não é um cachorro e, por mais que tentemos qualificá-la através de adjetivos (vira-lata, manso, de médio porte etc.), jamais o será, da mesma forma que uma partitura não é uma música e uma fotografia não é uma paisagem.

Assim sendo, em se tratando de literatura, a ideia de realismo é tomada por convenções, que aliás sofrem mudanças apreciáveis ao longo do tempo, como comprovou Erich Auerbach ao escrever Mimesis, uma história da literatura ocidental de Homero a Virginia Woolf com base na forma como cada período preferiu fazer sua representação literária da realidade.

Convém sublinhar que a impossibilidade de representar a realidade tal qual ela é não dispensa os autores de tentarem se aproximar dela. Aristóteles já recomendava representar as coisas não como elas são, mas como elas poderiam (ou deveriam) ser. O efeito imersivo da ficção, de onde ela deriva o seu poder, é rompido no momento em que algo impossível dentro de suas próprias regras acontece. Harry Potter pode derrotar trasgos e basiliscos, mas no momento em que desenhar um círculo quadrado a suspensão voluntária de descrença (na expressão de Coleridge) será rompida.

Dito isso, tolos aqueles que renegam a ficção como uma frivolidade de desocupados. Aristóteles considerava a composição poética mais filosófica e mais nobre que o registro histórico justamente por sua cizânia com a realidade: toda literatura, ao construir uma realidade fictícia, organiza e confere unidade à realidade propriamente dita, tornando-a mais inteligível.

Por exemplo A metamorfose, de Franz Kafka, embora envolva a transformação de um caixeiro viajante num inseto gigante — um acontecimento absurdo — , é capaz de representar realidades sociais e psicológicas de uma forma que bibliotecas inteiras de sisudez acadêmica não seriam capazes. É de sua deformação da realidade propriamente dita que ela deriva seu saber narrativo.

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