Viagens na minha terra | Resenha

Análise das “Viagens na minha terra”, de Almeida Garrett, uma das obras mais significativas do romantismo português.

Abreu Ferreira
7 min readOct 24, 2023

O romance Viagens na minha terra, de Almeida Garrett (1799–1854), foi publicado de 1843 a 1846 na Revista Universal Libonense. Trata-se de obra complexa, tanto na abundância de temas quanto na mescla de gêneros que a caracteriza: reveza-se entre relatos de viagem, digressões ensaísticas e, no coração do livro, o conto da “menina dos rouxinóis”.

Enredo

O ponto de partida é Lisboa, de onde o narrador-personagem (que se confunde com Garrett) parte rumo a Santarém, onde visitará um amigo. Vai em companhia de um grupo de pessoas, nem todas com o mesmo destino. No caminho, descreve pessoas e lugares, denunciando a decadência da nação portuguesa e tecendo digressões sobre temas históricos, literários, políticos etc. Próximo a Santarém, o grupo para para descansar em um vale onde se avista uma casa, em cuja janela o narrador tem a impressão de ver uma jovem atrás da cortina. Então o narrador introduz a história de Carlos e Joaninha, que diz ter ouvido de um companheiro de viagem.

Nessa casa viviam os primos Carlos e Joana, junto com sua avó. Um dia, cansado da vida pacata e oprimido pela rígida figura de Frei Dinis, que frequentava a casa e se intrometia nos assuntos da família, Carlos parte para a Inglaterra, onde se apaixona e promete casar-se com Georgina. Quando eclode a guerra civil, Carlos retorna a Portugal para lutar do lado dos liberais. Lá, reencontra e se apaixona pela prima Joaninha, e vive um drama para escolher entre uma moça e a outra.

A viagem e o conto

O romance é dividido em 49 capítulos, cada um precedido por um resumo em tópicos que ajudam o leitor a se localizar. A ação se desenvolve em duas principais linhas temporais: as viagens do narrador, ocorridas em 1843, e o conto da menina dos rouxinóis, cujo núcleo de ação coincide com a guerra civil que assolou Portugal de 1832 a 1834.

O encaixamento de partes tão distintas, uma jornalística e outra ficcional, pode parecer mero capricho do autor. A estrutura do romance parece formar um todo desconjuntado, sem nexo, e o próprio narrador contribui para essa impressão: embora, durante as viagens, ele cometa inúmeras intromissões digressivas, no conto emoldurado ele cala seus comentários, preservando o suspense e garantindo que as próprias personagens e situações resolvam o enredo. Com tamanha mudança estilística, o conto e a viagem parecem ter narradores diversos, o que contribui para a impressão de independência mútua.

De fato, o conto pode ser compreendido e apreciado sem auxílio do relato das viagens, e não é raro encontrar leitor que diga: “Não gostei das viagens, só a história de Carlos e Joaninha é que se salva”. Porém a análise atenta e informada do romance desvela o fundo ideológico que, como agulha e linha, atravessa e costura conto, viagens e digressões, de forma que todos esses elementos contribuam para a construção de um significado maior que eles mesmos.

Liberais e Absolutistas

A unidade do romance se dá pelo embate ideológico entre liberais e absolutistas, entre o mundo moderno e o mundo antigo. A importância desse conflito só pode ser compreendido à luz da história do século XIX, talvez o mais traumático da história de Portugal.

Em 1807, a família real, auxiliada pelos ingleses, zarpou para o Brasil em fuga das tropas napoleônicas. Como parte do trato com a Inglaterra, abriram-se os portos brasileiros para as “nações amigas”, o que deu fim ao monopólio de séculos que Portugal tinha sobre o comércio com a colônia. Para piorar, mesmo com a derrota definitiva de Napoleão, em 1815, a corte portuguesa permaneceu no Brasil, que, no mesmo ano, foi alçado à condição de país independente com a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Em Portugal, a burguesia empobrecida, a nobreza que perdera seus privilégios e o exército nacional, preterido em relação ao contingente estrangeiro, sentiam uma insatisfação que culminou em seguidas ações revolucionárias de cunho liberal, que obrigaram o retorno do rei D. João VI a Portugal enquanto seu filho Pedro de Alcântara ficou no Brasil como príncipe regente.

Burgueses, nobres e militares conseguiram instituir uma constituição progressistas. Setores conservadores da sociedade portuguesa, porém, querentes da retomada do absolutismo, foram liderados pelo príncipe D. Miguel, que encabeçou algumas investidas golpistas. Com a morte do rei D. João VI e um golpe de D. Miguel, seu irmão D. Pedro II (em Portugal D. Pedro IV) se viu instado a retornar a Portugal para lutar pelos liberais.

É dessa guerra civil que Carlos, personagem de Viagens na minha terra, participou.

Quixotescos e Sanchescos

Além da dicotomia entre liberais e absolutistas, numa digressão no capítulo II o narrador apresenta uma tese que opõe espiritualismo e materialismo, sendo eles representados respectivamente por Dom Quixote e Sancho Pança. Ao espírito pertenceriam as ideologias como o liberalismo, as doutrinas como a do cristianismo e os mitos nacionais que construímos a partir da História. Já a matéria se guiaria pelos princípios do pragmatismo e do prazer. A marcha da civilização se daria pela alternância dessas duas perspectivas, que caminhariam sempre próximas uma da outra, às vezes lado a lado, às vezes uma à dianteira, em dinâmica análoga à do fidalgo e do escudeiro cervantescos.

Essa mesma dicotomia é explorada através das figuras de Frei Dinis, absolutista representante do mundo velho, e Carlos, liberal representante do mundo moderno. Conforme o raciocínio de Helder Macedo (ver bibliografia), ambas as personagens são quixotescas e sanchescas em diferentes períodos da vida: Dinis de Ataíde, para redimir-se de uma vida pregressa pecaminosa, calcada nas paixões materiais, faz-se frade e abraça um espiritualismo intransigente e desatento para as mudanças de seu tempo. Carlos, por outro lado, começa espiritualizado pelo ideal da liberdade e, cedendo às tentações materiais, abandona todo idealismo para engordar, enriquecer, tornar-se barão e deputado. No romance, Carlos e Frei Dinis são inimigos naturais, mas não deixam de ser também, ironicamente, espelho um do outro.

A planitude da mulher do vale

Ainda segundo Helder Macedo, no universo das Viagens, enquanto os homens têm enredos próprios e se transformam ao longo do tempo, as mulheres são personagens planas; mantêm-se praticamente inalteradas, vivendo em função de Carlos e Frei Dinis. É significativa a figura de dona Francisca, avó de Carlos e Joaninha, que, de tanto chorar pela partida do neto, acaba cega. Vive sentada, dobando, e o narrador até a compara a Penélope, paradigma máximo da mulher que guarda fiel e resignadamente o lar na ausência do homem amado.

Depois, há os dois amores de Carlos: Joaninha e Georgina. No início do capítulo 4, Garrett devaneia sobre a inocência, exaltada pela poesia antiga, e a modéstia, incensada pelo ensaísmo inglês. A primeira virtude é atribuída a Joaninha (que inclusive vive em um vale, segundo o narrador, comparável ao Éden habitado pelo coração virginal do primeiro homem), e a segunda virtude é representada por Georgina. Dessa forma, a escolha entre Joaninha e Georgina não era a escolha entre duas personalidades complexas, mas entre o mundo antigo e o moderno. Tão logo, porém, a coisa começa a ficar séria, Carlos se esquiva, incapaz de firmar um compromisso concreto com as ideias pelas quais se apaixonou, e a indecisão descamba no ceticismo materialista.

Abandonadas, Joaninha enlouquece e morre, Georgina funda um convento e vira abadessa, e a avó acaba demente. Frei Dinis decreta que a velha já está morta, e que espera só a dissolução do corpo para enterrá-la. O fim que tiveram é resultado da perda de significado simbólico, dada a decadência espiritual dos paradigmas liberal e absolutista.

Carlos e Almeida Garrett

O narrador é em si próprio uma personagem. Há forte identificação entre ele e o próprio Garrett, até porque o autor realmente empreendeu em julho de 1843 uma viagem a Santarém, para visitar o político Passos Manuel.

Garrett viveu situação similar à de Carlos: foi educado por um rígido frade, seu tio Dom Frei Alexandre da Sagrada Família, que deve ter inspirado Frei Dinis; e, também como Carlos, Garrett militou pelo sucesso do liberalismo no país. Carlos pode, portanto, ser entendido como um alter ego de Garrett, e devido a isso o narrador tem legitimidade simbólica para, nas páginas derradeiras do romance, encontrar pessoalmente Frei Dinis, e, como um duplo de Carlos, assumir seu papel como paradigma do liberalismo. Junto ao frade, o narrador cumpre o dever do qual Carlos se eximiu: admitem que tanto o liberalismo quanto o absolutismo haviam errado, tendo ambos contribuído para o estado degradado em que Portugal se encontrava.

Dialogismo

Essa mensagem final, que sugere um caminho intermediário entre os dois paradigmas, talvez provenha da frustração que adveio da vitória liberal na Guerra Civil. Portugal permaneceu politicamente instável, e as coisas pareciam que nunca iam se resolver.

Mas, às custas da política, a literatura triunfou: a conjuntura despesperançosa impossibilitou que a obra acabasse panfletária em favor do liberalismo, ideologia que Garrett professava, e é justamente esse caráter dialógico, essa tentativa de conciliar o antigo e o novo, que confere às Viagens na minha terra sua permanência e grandeza.

Referências

GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. 4a ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

GUERRA Civil em Portugal (1832–1839). Infopedia [em linha]. Porto: Porto Editora. Acesso: 09 de jul. de 2022.

HIGA, Carlos César. “Abertura dos portos“. Brasil Escola. Acesso: 09 de jul. de 2022.

MACEDO, Helder. As Viagens na Minha Terra e a Menina dos Rouxinóis. In: Colóquio/Letras, Lisboa, nº 51, p. 15–24, set. de 1979. Acesso: 09 de jul. de 2022.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 37a ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

SILVA, Daniel Neves. “Independência do Brasil“. Brasil Escola. Acesso: 09 de jul. de 2022.

SILVA, Daniel Neves. “Revolução Liberal do Porto“. Brasil Escola. Acesso: 09 de jul. de 2022.

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